Atualidades e psicologia
Como conversar com crianças sobre abuso de forma leve e segura?

Maio Laranja é um convite à reflexão: como podemos, enquanto adultos, proteger a infância e combater o abuso e a exploração sexual de crianças e adolescentes?
Sabemos que esse é um tema delicado. Muitos pais e cuidadores, mesmo bem-intencionados, ficam inseguros sobre como abordar o assunto com os pequenos. Como falar sem assustar? Como alertar sem causar medo?
Neste post, queremos mostrar que sim, é possível conversar sobre isso com leveza, responsabilidade e, acima de tudo, com muito afeto.
O silêncio também comunica e pode não ser a melhor escolha.
Quando evitamos falar sobre assuntos difíceis, na tentativa de proteger a criança, acabamos criando barreiras para o cuidado. O silêncio, muitas vezes, não protege: ele deixa a criança vulnerável, sem saber o que é certo ou errado, sem entender seus próprios limites.
A base de tudo: vínculo e escuta.
Do ponto de vista psicanalítico, a criança está em constante construção. Ela aprende o mundo a partir das relações com os adultos, que oferecem linguagem para sentimentos, sensações, medos e desejos.
Falar sobre o corpo, os limites e a segurança não deve ser um “discurso de alerta”, mas parte natural da relação com a criança, como quando ensinamos sobre alimentação, higiene ou respeito ao próximo.
Essas conversas precisam acontecer de forma contínua, em um ambiente de acolhimento e confiança. A criança só absorve esse tipo de ensinamento quando se sente respeitada e ouvida.
Ensinar que o corpo é dela e que o “não” também é cuidado.
Uma das lições mais importantes é que o corpo da criança é dela. Existem toques que são permitidos e outros que não são. E tudo bem dizer não, mesmo para pessoas conhecidas e queridas.
Por exemplo: ninguém deve tocar nas partes íntimas da criança sem um motivo claro e, ainda assim, sempre com a presença de um adulto de confiança. Além disso, segredos que causam medo ou desconforto nunca devem ser guardados.
É fundamental também que os adultos respeitem os limites demonstrados pelas crianças. Se ela não quer abraçar ou beijar alguém, tudo bem. Podemos oferecer alternativas: “Você quer dar um tchau de longe?” ou “Prefere mandar um beijo no ar?”.
Assim, desde cedo, a criança aprende que pode fazer escolhas sobre seu próprio corpo.
Conversas com leveza fazem parte do cuidado
Falar sobre prevenção ao abuso não precisa ser traumático. Pelo contrário: quando essa conversa acontece com leveza e constância, ela se torna parte do dia a dia da criança, como escovar os dentes ou atravessar a rua com cuidado.
O ideal é que o assunto entre de forma natural nas interações diárias, com carinho, sem criar pânico ou medo.
Brincar também é forma de ensinar
O brincar é a linguagem mais autêntica da infância. É por meio das brincadeiras que a criança expressa sentimentos, fantasias e até desconfortos. Por isso, o momento lúdico pode ser uma excelente oportunidade para conversar sobre o cuidado com o corpo e com os sentimentos.
Existem livros, jogos, desenhos e histórias que ajudam a introduzir esses temas de forma acessível e acolhedora. Algumas indicações:
- Pipo e Fifi – Caroline Arcari
- A Mão Boa e a Mão Boba – Renata Emrich e Erica Ianni
- Não me toca, seu boboca! – Andrea Viviana Taubman
- Segredo Segredíssimo – Odivia Barros
- Leila – Tino Freitas e Thais Beltrame
Estes materiais funcionam como pontes para iniciar conversas importantes e ainda ajudam os adultos a se aproximarem do mundo emocional das crianças.
Ficar atento aos sinais
Mesmo quando a criança não verbaliza diretamente o que sente, alguns sinais podem indicar que algo não vai bem. Fique atento a:
- Mudanças bruscas de comportamento
- Medos repentinos
- Brincadeiras repetitivas ou com temas estranhos
- Fantasias muito diferentes das habituais
O olhar atento e sensível do adulto pode identificar esses sinais e agir de forma preventiva.
Não basta dizer “conte comigo” é preciso ouvir de verdade
Para que a criança confie e fale, ela precisa ter certeza de que será acreditada e acolhida. Não adianta prometer que ela pode contar tudo se, na prática, a reação for de dúvida, julgamento ou punição.
A escuta precisa ser ativa, amorosa e disponível.
A responsabilidade começa em casa
A proteção da infância não é uma tarefa exclusiva da escola, nem de campanhas públicas. Ela começa em casa, com os pais, mães, avós, cuidadores e todas as figuras adultas de referência.
Falar sobre sexualidade, violência e abusos ainda é difícil para muitos adultos, especialmente para quem cresceu em ambientes onde esses temas eram tabus ou, infelizmente, viveu experiências dolorosas. Mas é preciso romper o ciclo.
Adultos também precisam buscar ajuda, cuidar das próprias feridas e se preparar para cuidar das novas gerações com mais consciência e acolhimento.
Maio Laranja é todos os dias
O cuidado com a infância é contínuo, não apenas durante uma campanha, mas como prática cotidiana, feita de palavras, escuta e presença.
A infância protegida é construída com afeto, respeito e informação.
Ana Paula Curado da Paz Santos
Psicanalista, psicóloga e especialista em sexualidade.
CRP: 09/10452